quarta-feira, 19 de novembro de 2008

"suicídio / deus"

“(…)

- Em seu entender, o que é que impede as pessoas de se suicidarem?
(…)
- Sei pouco… Dois preconceitos as retêm… Duas coisas apenas; uma muito pequena, a outra muito grande. Mas a pequena é também muito grande.
- Qual vem a ser a pequena?
- O sofrimento.
(…)
- Mas não há maneira de morrer sem sofrimento?
- Imagine – e estacou à minha frente -, imagine uma pedra do tamanho de uma grande casa; ela está suspensa por cima de si; se ela cair sobre a sua cabeça far-lhe-á mal?
- Uma pedra do tamanho de uma casa? Isso é de meter medo, sem dúvida.
- Não falo do medo. Pergunto se haveria dor.
- Uma pedra, que nem uma montanha, com um milhão de toneladas? Claro que não haveria dor.
- Mas, enquanto ela estiver suspensa sobre a sua cabeça, terá muito receio de que ela lhe cause sofrimento. O maior sábio, o maior médico, todos, todos teriam muito medo. Podem todos muito bem pensar que não sentiriam nada, mas todos terão medo de sofrer.
- Seja! E a segunda razão, a grande?
- O outro mundo.
- Quer dizer, o castigo?
- Tanto faz. O outro mundo; o outro mundo e mais nada.
- Não há ateus que não acreditam absolutamente nada no outro mundo?
Calou-se outra vez.
- Julga talvez por si?
- Ninguém pode julgar se não por si próprio – disse ele corando – A liberdade só será total no dia em que for indiferente viver ou não viver. Eis o objectivo de tudo.
- O objectivo? Mas então talvez ninguém deseje viver.
- Ninguém. Afirmou ele sem hesitar.
- O homem tem medo da morte porque ama a vida; aí tem como eu entendo as coisas – disse eu. – E é a natureza que assim o quer.
- Isso é um logro! – e os olhos dele fulguraram. – A vida é sofrimento, a vida é medo, e o homem é infeliz. Tudo é sofrimento e medo. Hoje, o homem ama a vida porque ama o sofrimento e o medo. Foi assim que o criaram. A vida dá-se hoje a troco do sofrimento e do medo, e aí é que está todo o embuste. Hoje, o homem não é ainda esse homem. Surgirá um homem novo, feliz e orgulhoso; a quem será indiferente viver ou não viver; esse será o homem novo! O que vencer o sofrimento e o medo, esse então será mesmo deus. E o outro Deus desaparecerá.

(…)”

em: Os Possessos de F. Dostoievski.
Edições Europa-América (volume 1) pp: 104 e 105
(excerto de um diálogo entre António Lavrentievitch [o narrador] e Chatov)

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