segunda-feira, 28 de março de 2011

pastiche (a solidão)

"(...) e topo os olhos da mulher de pé à minha frente, a apertar contra o peito o saco de plástico como quem embala devagar um filho doente; e entendi que a solidão, disse ele no automóvel deserto a caminho de Lisboa, não é a marca de baton num copo num escritório vazio iluminado pelas persianas que a amanhecem, nem a saída de um bar onde deixamos talvez, pendurada na cadeira, a pele de cobra da alegria postiça que se destina a disfarçar a inquietação e o medo: a solidão são as pessoas de pé à minha frente e os seus gestos de pássaros feridos, os seus gestos húmidos e meigos que parecem arrastar-se, como animais moribundos, à procura de uma ajuda impossível."

em: "O Conhecimento do Inferno" de António Lobo Antunes (pp.70)

domingo, 20 de março de 2011

ao ritmo dos tempos (século XXI)

Esta noite apaixonei-me, com uma intensidade tal que teria forças para erguer, sozinho, uma cidade.
Esta noite o objecto de desejo ignorou-me, minto, rejeitou-me.
Esta noite senti-me o mais frágil dos seres.
Esta madrugada quis morrer, estar não faz sentido, a rejeição e a indiferença corroem e o desejo é não correspondido.
Esta madrugada não tive coragem de morrer, refugiei-me na solidão e numa garrafa de bom vinho.
Esta madrugada sofri.
Esta manha desejo esquecer, mas o desejo é ainda muito intenso.
Esta manha continuo sozinho, é o único modo que me sinto capaz de ser.
Esta manha vi pela janela apaixonei-me e esqueci tudo o resto.