domingo, 9 de novembro de 2008

"Pela Linha"


Ω percorria caminhando despreocupadamente aquele ponte, metálica e sólida, uma vez mais, era afinal, segundo parece, uma rotina diária dos seus finais de tarde de Outono no regresso ao lar… no entanto, desta vez, a sua despreocupação era apenas aparente e a noite há muito já havia descido sobre aquele vale. Ω estava embriagado [depois de uma devida análise tal era claríssimo!], de álcool após um dia inteiro a emborcar, só, copo atrás de copo, aguardente (bebida de que nem gostava) e da imagem de β a quem magoava invariavelmente, vezes sem conta, arrependendo-se no imediato… seria mau!?


A ideia de que β algum dia não lhe perdoasse era como ter agulhas a serem-lhe introduzidas no espaço entre os dedos e as unhas, sua vida sem β não faria sentido… mas Ω era mau, e β… β não havia de suportar para sempre o desrespeito e os maus tratos de Ω (nem este o queria, gostaria de mudar!), por muito que de Ω gostasse… continuava a caminhar...


A Ω assaltava agora outra inquietação: seria louco?! Só assim se poderia explicar o seu comportamento, o seu refúgio na embriaguez e solidão… Ω pára, a meio da ponte, da linha, a observar as travessas em madeira, já podres, e os carris metálicos , já enferrujados, daquela bela travessia, por onde há já 10 anos não passam locomotivas a caminho da Vila de P…, através das travessas consegue ainda, graças à noite límpa e fria de luar que se faz sentir, ver a água, que parece parada, daquela curso sobre o qual se ergue a travessia… sente-se impelido a saltar, puxado por uma força e uma vontade que não são as suas… será a consciência de que não conseguirá mudar?! Que só assim evitara a ausência, ainda que futura, de β na sua vida?!


Ω não resiste ao apelo, salta… Arrepende-se do acto imediatamente! Quer voltar atrás! Cai desamparado em direcção a um rochedo que se eleva do leito do rio! Tarde demais…


Ω acorda embebido em suores frios, felizmente apenas um pesadelo (delírios?) provocado, muito provavelmente, pelo álcool! Desconhece a cama onde se encontra… não é a primeira que tal lhe acontece, já é um hábito. Agora há que regressar a sua casa com uma boa desculpa para dar a β… Esta noite não regressa pela ponte, superstição talvez, pelo que realiza um caminho mais longo que o habitual… que importa isso, já é hora tardia e a desculpa já esta, mais uma vez, estudada: problemas de ultima hora no trabalho, um laivo de inspiração e criatividade momentâneos e telemóvel esquecido (β acredita sempre!).


Ω ao chegar numero 12 da rua M…, entra discretamente, como sempre faz, mas, é rapidamente assaltado por uma visão macabra… no amplo hall de entrada de sua casa depara-se com β e mais umas quantas caras suas conhecidas e intimas em redor de uma mortalha ladeada de grandes sírios… é o seu corpo que ali se encontra jazente! Tentou falar a β, não conseguia…


“Artista plástico Ω, embriagado, comete suicídio na antiga ponte ferroviária da Vila de ....”


Foi o que pode ler no jornal local na manha seguinte. Irónico, pensou Ω…

Texto, fotografias e edição: Mauro Correia, Foz Côa, Outubro de 2008

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