sexta-feira, 17 de abril de 2009

mar & açúcar

"Sempre me lembro de ter ouvido o mar. Da mistura com o vento nas folhas das palmeiras bravas, um vento que nunca deixa de soprar, mesmo quando nos afastamos da costa e avançamos canaviais adentro: é o ruído de fundo que acompanha a minha infância. Ouço-o agora, no mais íntimo de mim, e levo-o comigo para onde quer que vá.

(...)

"Na escuridão, penso no mar como se fosse uma pessoa humana, com todos os sentidos despertos para melhor o ouvir chegar, para melhor o receber. As vagas gigantescas cavalgam os recifes, vêm desabar na laguna e o estouro faz vibrar a terra e o ar como um caldeirão. Ouço-o, o mar mexe, respira.
(...)"

[página: 9]

"(...)

Há um cheiro acre no ar, o cheiro da seiva das canas de açúcar, da poeira, do suor dos homens. Um pouco atordoados, caminhamos corremos em direcção às casas de Tamarindo, onde chegam os carregamentos de cana. Ninguém repara em nós. Há tanta poeira nos caminhos que já estamos vermelhos dos pés à cabeça, e a nossa roupa assemelha-se a gunnies. Muitas crianças correm a nosso lado pelos caminhos, indianos, caíres, comem as canas caídas dos carros de bois. Toda a gente se encaminha para a fábrica de açucar, a fim de ver as prensas a trabalhar.
Finalmente, estamos diante dos edifícios. Sinto algum receio, pois é a primeira vez que venho aqui. Diante da alta parece caiada, detêm-se as vagonetas e os homens descarregam as canas que vão ser lançadas nos cilindros. A caldeira exala um fumo denso, arruçado, que escurece o céu e nos sufoca quando o vento o desvia na nossa direcção. Há barulho e jactos de vapor por todo o lado. Mesmo à nossa frente, vejo o grupo de homens que mete na fornalha o bagaço das canas esmagadas. Estão quase nús, como titãs, com o suor a escorrer-lhes pelas costas negras, de rostos crispados pelo calor ardente. Não dizem nada. Limitam-se a pegar no bagaço e a lança-lo no forno às braçadas, gritando de cada vez: han!
(...)

"(...) O ruído, o calor, o vapor são tais que que a cabeça me anda à roda. O suco claro escorre sobre os cilindros e vai cair nas tinas ferventes. Junto das centrifugadoras, estão as crianças. Descubro Ferdinand: está à espera, de pé diante da tina que gira lentamente enquanto a calda espessa acaba de arrefecer. Há uma forte ondulação na tina, o açucar escorre por terra, pende em cuágulos negros que rolam pelo chão coberto de folhas e de palha. As crianças acorrem aos gritos, apanham os pedaços de açucar e afastam-se para ir chupa-los ao sol.

(...)"

[página: 16 e 17]

exertos de: "O Caçador de Tesouros" (Ed. Assírio & Alvim; colecção o Imáginário: nº: 27)
por: J.M.G. le Clézio

Sem comentários: